1, 2 e 3. Sobre não se prostituir intelectualmente.

Personagens: 1: Eu, 2: Tu e a 3: Ela


2: Cara lê esse texto aqui que eu escrevi.

1: ...(lendo).

2: (cara de ansiedade) E ai o que tu achou?

1: Quer a verdade?

2: Com certeza.

1: Velho, foi o texto mais insípido e sem vida que você já escreveu, parece que foi feito à força... O que aconteceu?

2: Tenho uma confissão a fazer, eu me prostitui intelectualmente.

1: (cara de espanto) Não acredito que você fez isso... Como foi que aconteceu?

2: Bom é o seguinte, estava conversando com uma menina...

1: (interrompendo) Quem?

2: A 3, você a conhece, já te vi com ela... Ai ela chegou e disse?

2: (relembrando)

3: Ei fii, você escreve poemas né?

2: Escrevo, não sempre, só algumas vezes quando me sinto inspirado.

3: (cara de pidona) Escreve um pra mim, falando de mim, eu amo poemas...

2: 1, ela era bonita, mas não senti aquilo sabe, coração bater mais rápido, pernas trêmulas, essas coisas que a gente sente quando se apaixona.

1: E aí?

2: E aí que eu não estava inspirado, não me senti motivado a escrever, sabe, só nesse dia percebi que essa coisa de verve é séria, já escrevi falando até de uma vadia da esquina, mas nunca consegui escrever algumas linhas num cartão do dia das mães pra minha velha que tanto amo.

1: É 2, não tem explicação, o nosso Eu-lírico tem vida própria, ele chega e se apossa, fala o que quer e só nos resta escrever, a única vantagem é que ganhamos os créditos, (rindo) ainda bem que pouca gente leu o diálogo de Íon de Platão, porque se não descobririam que somos uma fraude.

2: Pois é, depois de ter escrito essa porcaria, entreguei o texto para a 3, ela amou, ficou eufórica, me elogiava...

(relembrando)

3. Meu Deus que coisa mais linda, ninguém nunca falou coisas tão incríveis de mim, você é maravilhoso, domina as palavras, você me merece, me fez se sentir bem melhor... Quer saber o que vou fazer agora?

2: Fiquei todo animado, apesar de ter me sentindo um imbecil ao terminar de escrever algo tão caldo de bigorna imaginei, vou ganhar um beijo e quem sabe ficar com ela.

1: E ai? O que ela disse?

2: Bom, ela falou exatamente assim...

(relembrando)

3: Sabe o que vou fazer agora que você escreveu isso?

2: Já ia me preparando para abraçá-la quando ela falou:

3: Vou jogar na cara do meu ex-namorado e mostrar pra ele como se trata uma mulher, ele nunca conseguiu falar essas coisas sobre mim.

1: (as gargalhadas) Caracas, isso foi mal velho.

2: (cara de frustrado, mas satisfeito) Pois é, todavia valeu a pena, aprendi muito, foi um desprazer enorme tudo isso, só que entendi que não devo escrever se não estiver inspirado, além de ter feito um texto a altura do intelecto dela, digamos, um mol químico, me senti um lixo, como quem termina uma relação sexual, sem ter sentido prazer algum, empurra o papel pro canto, senta a beira da cama de short de bolinhas e meias listradas, acende um cigarro, olha pro papel todo gozado de tinta azul e diz, espero que tenha sido melhor pra você do que foi pra mim, e o olhar de desdém é recíproco. Sei o quanto ofendi aquela folha de papel e fui ofendido por ela. Principalmente por ter olhado pra folha e ter visto a cara de desapontamento que fez por saber que eu poderia ter feito bem melhor que aquilo.

1: (ironicamente) Mas pelo menos ela gostou não é?

2: É, mas pra mim pouco importou, mais vale uma crítica de um sensível como você do que um elogio de uma mulher que não consegue diferenciar se um texto é de Paulo Freire ou do Almeida Garret.

1: Também tenho uma confissão a fazer...

2: (esperançoso) Então conte e faça-me me sentir menos mal.

1: Eu namorava com a 3...

2: (cara de espanto) Vixi velho, foi mal então...

1: Esquenta com isso não, eu terminei porque ela não tava nem aí pro que eu escrevia, eu sempre escrevia sobre tragédias e melancolias e nunca consegui escrever nada pra ela. Em seu aniversário eu bem que tentei, mais brochei intelectualmente e não consegui me prostituir. Comprei flores, chocolates e mandei junto um cartão com toda a originalidade desgastada da frase eu te amo.

2: E ela?

1: Brigamos, quis terminar e enquanto ela foi ao quarto pegar umas coisas minhas, roubei alguns chocolates pra comer no caminho de volta pra casa. Dois dias depois escrevi um texto pra 3, bem melancólico por ter terminado e mandei pra ela.

2: E ela?

1: (relembrando)

3: Esse texto aqui tu dá pra tua mãe...

2: (as gargalhadas) e ai o que você fez?

1: Disse pra ela que até um hidrante me inspirava mais que ela

2: (cara de espanto) Cara tu pegou pesado viu... E ela?

1: Desligou o telefone antes que eu pudesse explicar que eu a amava, que era apaixonado por ela como nunca fui por ninguém, mas que meu Eu-lírico amava outras mulheres e coisas, que era boêmio e cigano, que nunca se importou em expressar literariamente minhas emoções, apesar de que sempre respeitei seu espaço e me emprestava para as suas manifestações artísticas. Mas apesar disso me sinto melhor que você.

2: Por não ter se prostituído intelectualmente não é?

1: Pois é, nunca fiz e não irei fazer, nem mesmo quando terminar de narrar esse pequeno drama...

O chato é que vou ter que ler esse seu texto mais uma vez...

2: (as gargalhadas) Quando ela vier esfregar na tua cara né?

1: Pois é...

Izaú Melo Madrugada de 01/09/08
Dedicado a todos os artistas que já se prostituiram intelectualmente.