Uma noite fria, inebriante e soporífera.
Um corpo cataléptico e um coração saturado de sentimentalismo, descansam inertes, afogados nas areias de Morfeu.
Porém o que deveria ser um doce descanso torna-se uma viagem paralela à realidade e a ilusão.
Deixo o corpo e o observo do teto. Chegou a hora do passeio começar.
O cenário se forma como um programa de computador carregando seus arquivos. Menos de um quilômetro de um tom negro. Aproximadamente cem outros personagens divagam por essas brumas, como peixinhos em um aquário de paredes invisíveis. Um mundo aparentemente preto e branco. Personalidades interagem. Alguém voa sobre rodas, uns surfam no asfalto, outros movimentam pedras como se isso fizesse algum sentido. Alguém dita as regras; poucos as cumprem.
Estou sentado no banco a observar o cinza celestial, as cores do vento e da chuva que se aproxima devagar. No lado esquerdo vejo Freud deitado no divã e na poltrona Dom Quixote de La Mancha toma nota em um bloco de papel. De repente uma personagem se aproxima. No surrealismo do mundo preto e branco ela aparece em vermelho, se destacando entre as demais pelo seu jeito de ser, atraente, agressiva, misteriosa. Não é tão bonita, entretanto há algo infinitamente mais forte que isso, que a transforma em um ser especial. Talvez as retinas dos meus olhos ou a forma ignota pelo qual codifiquei as informações. Um amor contrátil. Milhões de palavras sobrevoam meu ser. Capturo algumas com um puçá de caçar borboletas e as exponho a ela, que compreende tudo e muito mais do que deveria compreender. Eva me mostra seus dedos e vejo neles minhas digitais. As cortinas se fecham e ao se abrir, estou de Romeu e ela de Julieta. Ganho o prêmio Nobel por ter descoberto o porquê de terem inventado o amor Despejo a seus pés monólogos poéticos e ela ri. De repente aparece Brutus propondo-me amizade. Descubro que há muito ele é apaixonado por Cleópatra e eu o reprovo por isso. O desafio para um duelo. Tenho sede e Julieta me oferece um vinho de uvas colhidas nas videiras do Éden. Tomo tudo de uma só vez, e Sancho, meu fiel escudeiro, me diz que o líquido era de cicuta que um boticário havia preparado. Sinto-me fraco, idiota. Tudo começa a girar e um golpe de ar derruba algumas partes do cenário de plástico, como se tentasse me avisar do perigo. Aparecem então sete anões, uma loira de um comercial de cerveja empunhado a caveira de Hamlet e uma bruxa com uma maçã. Percebo que quase todos possuem uma caixinha luminosa que os permite comunicar-se entre si. Percebo que também possuo uma e com ela o poder de expressar meus sentimentos platônicos a Julieta. Ocupo-me criando algumas mensagens. E um coelho branco de cartola rouba a cena e a vende por dois ovos de ouro a Dante e Goethe, que discutem calorosamente, quem foi o melhor. Sou agora platéia da minha própria peça.
Depois da discussão que não levou a nada, volto a entrar em cena, agora estou de Nero o imperador, e quero por fogo em tudo. No limiar da loucura, odeio a todos, inclusive a mim mesmo, exceto Julieta, Cleópatra, Eva, Dulcinéia... já nem sei mais, só a reconheço pela pequena cicatriz na língua e o brilho nos olhos que não mudam independente da forma do corpo. Um sentimento mentecapto me mantém ligado a ela, no entanto ela não está ligada a mim e Camões ainda insiste em me falar de amor.
Revoltado, peço emprestada a tocha de Prometeu, ponho fogo em tudo. Mato todos sob a bandeira suástica. A mortualha se transforma em um campo florido, a primavera que Ernesto Che sempre quis ver. Dulcinéia chora a morte de Brutus e me odeia por isso. Sinto-me hipocondríaco e de certa forma jucundo. Entretanto, cultivo a panacéia e o faço reviver. Ela ri e o beija em minha presença. Com um ódio faraônico empunho novamente minha espada (alguém mais entra em cena, é Schopenhauer, digo-lhe que ele está no sonho errado, que não é hora para filosofias e ele se vai). Lutamos por algumas horas e eu o deixo no chão, e quando vou matá-lo, sinto uma flecha lacerar-me as entranhas, a lança penetra meu coração. Olho pro lado e vejo Robim Hood recebendo trinta moedas de prata das mãos de Julieta pelo serviço bem feito. Vou agonizando ao som de tocata e fuga em ré menor de Bach.O céu se revolta, nuvens negras o invadem, os corvos procuram abrigo, o vento dá asas para as cruzes do velho e lívido cemitério. Minha espada se transforma em um ramalhete de violetas e assisto minha morte lentamente. Nove minutos depois a melodia ressuscita-me e levanto meio tonto com a flecha ainda cravada sobre minhas costas. Vejo Julieta abraçada a Brutus (com uma corda na mão), ambos caminhando por sobre uma calçada de tijolos de ouro a procura do padre de Oz,. Vou até ela. Aceito minha derrota. Entrego-lhe o ramalhete de violetas, agora, mortas e desbotadas como prova do meu puro amor. Judas me entrega a corda, mas não encontro uma árvore (já não há mais cenário). Vou caminhando sem rumo e sem sentido, quando do nada, encontro uma adorável menina usando um capuz vermelho e uma cesta nas mãos. Da cesta ela retira um gato que usava botas. O gato me propõe uma troca e me dá um revólver no lugar da corda. E eu atiro contra mim mesmo.
Morro gloriosamente.
A platéia chega ao êxtase. Um final belíssimo.
De repente acordo, um suor frio. Percebo que tudo não passou de um sonho. Embaixo do travesseiro encontro a caixinha luminosa, nela, um envelope. Na caixinha vejo o que já sabia e no envelope eu o abro, e no bilhete virtual eu leio toda a incoerência da palavra: "deslize.
Izaú Melo
Sobre não precisar usar maconha para escrever textos malucos
10:25:00
Textos e Textículos